Dolores e dólares…. rosebud
A idéia de cultura, sempre moldada conforme as visões políticas de cada tempo, detém em si as chaves dos sistemas de poder. Chaves que podem abrir portas para a liberdade, para a eqüidade e para o diálogo. Mas também podem fechá-las, cedendo ao controle, à discriminação e à intolerância.
Da mesma forma que o poeta T.S.Eliot inter-relacionava cultura sob a ótica do indivíduo, de um grupo e de toda a sociedade, precisamos reconhecer cultura como uma espécie de plasma invisível entrelaçado entre as dinâmicas sociais, ora como alimento da alma individual, ora como elemento gregário e político, que liga e significa as relações humanas. Perceber a presença desse plasma – ou seja, de uma matéria altamente energizada, reativa e que permeia todo o espaço da sociedade – é fundamental para a compreensão dos fenômenos do nosso tempo.
Cultura é algo complexo. Não se limita a uma perspectiva artística, econômica ou social. É a conjugação de todos esses vetores. Daí a sua importância como projeto de Estado e sua pertinência como investimento privado. Uma política cultural abrangente, contemporânea e democrática deve estar atenta às suas várias implicações e dimensões.
A UNESCO, organismo das Nações Unidas destinada a questões de educação cultura e ciências, define cultura como “um conjunto de características distintas espirituais, materiais, intelectuais e afetivas que caracterizam uma sociedade ou um grupo social”. Esse entendimento abarca, além das artes e das letras, “os modos de vida, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”.
Sob a luz deste conceito de cultura não seria absurdo classificar um filme publicitário ou merchandising como uma ação cultural. Não se trata do investimento em arte, mas num determinado conjunto de comportamentos necessários a reforçar a idéia de consumir um produto. Ou ainda valorizar uma marca a ponto de esta avalizar e qualificar este produto ou serviço.
A empresa age para seduzir, ou até mesmo impor, por meio de ação sistemática e repetida, sua “cultura”, seus valores e códigos. Ou seja, para consumir determinada marca de cigarro, automóvel, ou calça jeans, é preciso praticar, ou ao menos identificar-se, com determinados padrões de conduta.
Levado às últimas conseqüências, esse sistema traduz-se num processo de aculturação, baseado na necessidade de destituir o sujeito de valores, referências e capacidades culturais intrínsecas, em busca de algo mais estimulante, sedutor e divertido: o consumo.
A serviço das instâncias de poder, sustentadas entre si, como nos dias de hoje, atuam os sistemas financeiro, governamental e de mídia. A arte assume uma preocupante função apaziguadora e definidora dos modos de vida e costumes. Joost Smiers, em Artes sob Pressão (2003), pergunta “onde os conglomerados culturais podem espalhar suas idéias sobre o que deve ser a arte, a questão crucial é: as histórias de quem estão sendo contadas? Por quem? Como são produzidas, disseminadas e recebidas?”
Max Weber costumava dizer que o homem está preso a uma teia de significados que ele mesmo criou. Nesse sentido, assim como Geertz (1973), também podemos considerar cultura como um conjunto de mecanismos de controle para governar comportamentos. E a história recente exibe vários alertas de como as indústrias culturais e os meios de comunicação de massa podem ser grandes armas disponíveis para acomodar e disseminar determinados comportamentos. Assim fizeram o nazismo, o fascismo, o comunismo e as ditaduras militares, sobretudo as latino-americanas.
Esse rastro está cada vez mais presente nas sociedades orientadas para o consumo. Em comum, a ausência do Estado em sua responsabilidade com a cultura e a diversidade; e o domínio marcante das indústrias culturais como ponta-de-lança para uma economia global centrada nas grandes corporações.
Cultura, nesse caso, funciona como uma chave capaz de trancar o indivíduo em torno de códigos e simbologias controladas: pelo Estado, por uma religião ou mesmo por corporações e através dos instrumentos gerados pela sociedade de consumo, como a publicidade, a promoção e o patrocínio cultural.
Mas essa mesma chave, que oprime o ser humano e desfaz sua subjetividade, tem o poder de abrir as portas, permitindo ao indivíduo compreender a si e aos fenômenos da sociedade e do seu próprio estágio civilizatório, em busca da liberdade. Para isso, basta girá-la para o lado oposto.
Em Dialética da Colonização (1992), Alfredo Bosi define cultura como o “conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que se devem transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de coexistência social”. E supõe uma “consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro”.
A cultura cumpre nesse caso uma função pouco reconhecida e estimulada nesses tempos: transformar realidades sociais e contribuir para o desenvolvimento humano em todos os seus aspectos. Algo que identifica o indivíduo em seu espaço, lugar, época, tornando-o capaz de sociabilizar e formar espírito crítico.
A realidade desse cenário precisa ser encarada por toda a sociedade brasileira, que usufrui os benefícios dessa globalização econômica, mas ao mesmo tempo se expõe de maneira preocupante aos seus efeitos colaterais. O país corre risco de virar as costas ao seu grande potencial da produção cultural e sua vocação para o desenvolvimento de um poderoso mercado formado pelas próprias manifestações culturais.